França vive “uma certa tensão” e um “grande descontentamento”
Foram apenas nove votos que salvaram o governo francês de uma moção de censura esta segunda-feira. Esta foi “uma vitória a curto prazo” para o executivo, que consegue impor a polémica reforma do sistema de pensões, considera o filósofo Diogo Sardinha. Porém, o investigador avisa que resta avaliar o impacto, "a médio prazo", do cenário social de “grande descontentamento” e de “uma certa tensão” em França.
Esta segunda-feira, o governo francês sobreviveu, por um triz (nove votos), a uma moção de censura. A proposta de reforma do sistema de pensões, defendida pelo Presidente francês, entra em vigor de imediato, incluindo o aumento da idade da reforma de 62 para 64 anos, que é um dos temas que mais contestação tem gerado no país. A oposição garante que os protestos vão continuar e, nas ruas, as manifestações não têm parado desde quinta-feira.
Crise política? Crise social? Crise institucional? Como está a França e que perspectivas se pode ter? Para conversar connosco sobre o tema, o nosso convidado desta terça-feira é Diogo Sardinha, antigo presidente do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, e investigador da Universidade de Lisboa.
RFI: Ficou surpreendido por um resultado tão apertado na Assembleia Nacional francesa? Uma das moções de censura ficou a nove votos de ser aprovada…
Diogo Sardinha, investigador:Esse cálculo já estava mais ou menos previsto pelo governo e pelo Presidente Emmanuel Macron que sabia que não teria, talvez, votos suficientes para fazer passar a reforma das pensões, mas que também não seria derrotado por uma moção de censura. É um cálculo com poucos votos de diferença, mas isso é suficiente para manter o governo.
Esta é uma vitória ou derrota para o executivo?
No curto prazo, tenho a impressão que é uma vitória. É preciso compreender que o Emmanuel Macron é um homem pragmático. Ele quer fazer passar as medidas dele e está disposto a pagar um certo preço. Como se vê, ele esteve disposto a arriscar a sobrevivência institucional do governo. O governo até agora mantém-se, portanto, ele consegue fazer aprovar essa reforma, usando um artigo da Constituição que permite tomar este tipo de decisões.
O artigo 49.3.
Exactamente. Por isso, no curto prazo é uma vitória. O problema das pensões, no curto prazo, está resolvido. A lei passou e isso era o importante para ele porque Macron é um homem que não gosta de perder tempo. Ele foi ministro no tempo do François Hollande, ele vinha das empresas privadas e da banca privada, e uma das coisas que o choca, quando era ministro, são as horas que ele tem que passar a discutir com todas as pessoas até que uma medida seja aprovada. Isso para ele é insuportável.
Agora, ele é Presidente, foi durante muito tempo interrompido pela pandemia que teve de ser tratada. Esse casoresolvido, vamos avançar. E ele avança com a reforma das pensões que faz passar, usando o artigo constitucional. Resta saber o que é que vai acontecer no médio prazo em termos de descontentamento e de manifestações de rua.
Diz que a curto prazo é uma vitória porque o governo se mantém, mas podemos questionar quanto tempo se mantém? É que, desde quinta-feira há manifestações diárias nas ruas, houve confrontos com as autoridades, detenções, viram-se barricadas. O que significa toda esta contestação social e que peso pode ter?
Esta contestação social significa um grande descontentamento e, sobretudo, uma grande revolta em relação ao facto que, depois de tantas manifestações e depois de greves que foram completamente pacíficas, há este uso [do 49.3]. Não é um abuso da autoridade porque o artigo está previsto na Constituição, mas há um abuso no sentido em que não se deixa os deputados votarem, não se deixa a Assembleia votar acerca daquela reforma.
Toda a gente é surpreendida – os sindicatos, os cidadãos, todas as instituições são surpreendidas pelo facto que o governo diz: “Pronto, muito bem. Já se discutiu o suficiente e agora o debate democrático termina e constitucionalmente nós podemos fazer passar a lei e fazemo-la passar.” É claro que isto gera um grande descontentamento e uma grande revolta até junto de pessoas que não estavam, talvez, muito mobilizadas pelas greves.
Agora, o que nós vemos, por exemplo, nas ruas de Paris é, efectivamente, o lixo que se acumula e que não é recolhido; o lixo que é queimado por manifestações na rua. O que isto vai dar ninguém pode saber, é preciso esperar, mas a situação é de uma certa tensão e, claro, de um grande descontentamento.
Mesmo que o governo caísse, Emmanuel Macron mantém-se Presidente porque uma coisa é o poder executivo e outra coisa é a Presidência da República. Pode ser que o governo se arraste, o Presidente fica mais ou menos protegido, mas, de qualquer modo, é o último mandato de Emmanuel Macron. Ele não vai disputar mais um mandato. Desse ponto de vista, ele não tem muito a perder.
Seria favorável ao Presidente Emmanuel Macron deixar cair a primeira-ministra Elisabeth Borne?
Como imagina, são cálculos que me escapam. Não posso dizer se o interesse de Emmanuel Macron é guardar Elisabeth Borne mais tempo ou não. Aquilo que eu posso sublinhar é: Elisabeth Borne, quando faz o discurso na Assembleia da República, ao anunciar que vai usar o artigo 49.3, um dos argumentos que apresenta vem de Emmanuel Macron - provavelmente todos, mas pelo menos um. Ela diz que o Parlamento já discutiu 175 horas acerca desta proposta e que não se pode perder mais tempo.
Isto é uma cópia do que escreve Emmanuel Macron no livro que publicou em 2016, que se chamava “Révolution”, em que ele diz:“Temos de fluidificar todos estes circuitos de decisão. Não pode ser que uma lei demore mais de um ano para ser aprovada e, depois de ser aprovada, demore mais um ano para ser regulamentada. Tem que se avançar.”
Este é o argumento que Elisabeth Borne dá e é um argumento que é típico de Emmanuel Macron que é: Não há tempo a perder. Claro, com o risco de passar por cima do debate das instituições.
Falou do livro “Révolution” [“Revolução”]. Ora, o que está a acontecer neste momento nas ruas, as manifestações diárias, o lixo ainda não recolhido em muitas ruas de Paris, algumas faculdades barradas, greves nas refinarias e em algumas centrais de electricidade… Os manifestantes podem paralisar realmente o país?
Claro que as manifestações podem paralisar o país, não seria a primeira vez. Um dos acontecimentos passados que nos pode vir à memória foi o que aconteceu no final de 2005, princípio de 2006 - na altura havia a presidência do Jacques Chirac – quando o parlamento quis abordar o Contrato Primeiro Emprego, que era uma nova legislação para a entrada dos jovens no mercado de trabalho.
O chamado “CPE”…
Exactamente. Isto levantou uma grande polémica e levantou grandes manifestações de rua numa amplitude que não estava prevista e a lei teve que ser retirada.
Essa possibilidade está em cima da mesa? Que esta lei da reforma do sistema de pensões possa ser retirada?
Tudo pode acontecer. Quais são as probabilidades? Isso não lhe sei dizer. É preciso ver o que é que vai acontecer nos próximos dias. Há uma greve anunciada, que se prevê que seja bastante forte, na quinta-feira, e agora vamos ver o que é que acontece, mas futurologia não posso fazer.
Mesmo assim, haverá alguma hipótese de esta crise social e política redundar na dissolução do parlamento e no regresso às urnas?
Não lhe sei dizer. Repare, a França conheceu, já num dos governos de Emmanuel Macron, momentos de turbulência muito fortes, por exemplo, com os coletes amarelos. No entanto, Emanuel Macron acabou por ser reeleito e acabou por presidir um novo mandato, com um novo governo.
A França tem instituições fortes, elas podem ser abaladas por momentos, há leis que podem ter que ser retiradas, há figuras que mudam, mas as instituições têm tendência a manter-se.
Este descontentamento social, que nasce de uma reforma contestada pelos franceses, não pode dar algum alento para a subida da extrema-direita francesa, nomeadamente nas eleições presidenciais de 2027?
Sim, claro. Nas eleições legislativas, a extrema-direita já teve uma grande subida e tem um grupo parlamentar de praticamente 90 deputados.
É claro que um dos motivos pelos quais o centro-direita não votou as moções de censura foi para não criar aquilo que ele chamou “um caos” que, no ponto de vista deles, pode servir à extrema-direita e minar ainda mais o terreno que é do centro-direita. Portanto, todas as pessoas que são próximas do antigo Presidente Nicolas Sarkozy não querem caos porque têm a impressão - não sei se com razão ou sem ela - que esse caos vai favorecer nas próximas eleições a Marine Le Pen e os seus. Esse é um dos motivos pelos quais o centro-direita tem tanta cautela.
Do lado da esquerda, temos uma esquerda que está no Parlamento. A França Insubmissa, por exemplo…
Com Jean-Luc Mélenchon a dizer aos manifestantes para continuarem a manifestar e para irem para as ruas e não se calarem. (O Presidente teria dito, segundo o Le Parisien, que Mélanchon estava “a mandar achas para a fogueira”)…
Pronto, com uma representação importante e aguerrida. Vimos o comportamento que eles tiveram, de contestação, quando foi o discurso da Elisabeth Borne para anunciar a decisão. Mas, é uma esquerda que também não consegue ganhar mais, não consegue ampliar mais a sua base de apoio. Portanto, é uma situação delicada.
Esta quarta-feira, o Presidente Emmanuel Macron vai falar no jornal televisivo. O que é que se espera? O que é que as pessoas esperam?
Penso que o que as pessoas desejariam, uma parte importante das pessoas, seria que ele reconhecesse que o recurso a este artigo da Constituição é - não um abuso em termos institucionais - mas um abuso em termos de uma quebra de confiança num debate que estava instalado. O parlamento estava a debater acerca da lei e, no momento em que o parlamento vai votar, o Presidente e o governo dizem: “Não, não votam, nós já decidimos outra coisa.”
É claro que isto é uma traição, é um abuso desse ponto de vista. Mais uma vez, não é um abuso do ponto de vista institucional porque não há ruptura legal, mas é um abuso do ponto de vista da confiança em que deixa as pessoas debater seriamente e negociar seriamente e, no fim, diz: “Não, afinal somos nós que decidimos.” Portanto, há muita gente que gostaria de ouvir Emmanuel Macron reconhecer este tipo de coisa e voltar atrás.
É claro que ele não vai fazer isso e o que se espera é que ele explique, que ele seja pedagogo e que insista mais uma vez em todos estes pontos de que lhe falei: “Não podemos perder tempo; a França não pode ser vítima de uma revolução que está a acompanhar o mundo inteiro que é uma revolução tecnológica, ecológica, industrial, económica; a França tem que estar à altura desta revolução - isto é o discurso do Emmanuel Macron - e para estar à altura desta revolução tem que tomar medidas radicais, incluindo medidas que representam muitas vezes descontentamento popular elevado. Pronto, isto vai ser o discurso dele.
Agora, o que é importante nesta questão das reformas é: quem é que pode trabalhar depois de uma certa idade ou não. Eu não sou contra o facto de que as pessoas possam trabalhar, se assim o desejam, até muito mais tarde do que a idade da reforma. E não sou muito favorável à ideia de uma idade de reforma obrigatória. Se a pessoa quer continuar a trabalhar a meio tempo, deve poder continuar e, porque não, manter a sua vida activa.
Há outras profissões que são desgastantes ao longo da vida, em que a pessoa tem o direito de ir para a reforma mais cedo porque o corpo já deu o que tinha a dar. São profissões físicas e o corpo já deu o que tinha a dar e a pessoa tem direito a descansar. Tanto mais que, durante todos esses anos em que trabalhou arduamente, descontou para a Segurança Social.
Agora, não creio que seja isto que Emmanuel Macron vá dizer. Vai dizer que a sua lei está aprovada e vamos continuar e temos outras leis para aprovar. Este é o programa dele que, como digo, foi interrompido durante muito tempo pela pandemia e que agora, nos últimos tempos do seu mandato, tem que avançar ao ritmo que ele deseja.
Disse que os franceses, de certa forma, esperavam que ele voltasse atrás. Como assim, voltar atrás?
Não, ele não vai voltar atrás. Nós sabemos que ele não vai voltar atrás, a menos que houvesse, nas próximas semanas, uma grande contestação popular muito elevada. Não creio que ele vá voltar atrás, a não ser que seja com a pressão das ruas e também com a pressão das instituições, com as negociações dos bastidores parlamentares, do Senado. Tudo isso conta.